segunda-feira, 23 de junho de 2014

CANDURA, UM SEGREDO PARA REENCANTAR A VIDA


Nossos relacionamentos, correntemente, são mais pautados pelo pragmatismo, restando pouco espaço para gestos de candura, de pureza, de inocência, de absoluta transparência, quase como pertencendo a um mundo encantado, hoje em dia, cada vez mais restrito, talvez, ao convívio das crianças. Candura, assim entendemos, é diferente de ser meramente bonzinhos; é mais do que sinceridade, tem a ver com pureza, com simplicidade de propósito. Candura se assemelha com lhaneza, diferente de fraqueza. Candura está mais ligado com a capacidade de admirar-se e, de se envolver. Candura é oposto de grosseria, cinismo, hipocrisia e malícia. Certamente é um artigo em falta na maioria dos relacionamentos humanos atuais, mais orientados pela praticidade, pelo jogo de interesses, pela dissimulação.
Destaco aqui, as vivências integradas da verdade e da bondade, que consubstanciam um gesto de candura. Com o passar do tempo, cada vez mais observa-se não obstante, a falta de uma ou outra destas, reduzindo-se ora a um transbordar de sinceridade desapiedada, ora, a um ser bonzinho  inconsequente, que são, respectivamente,  simulacros da verdade e da bondade. Neste interim, a cada dia, esgotados pela luta incessante movida mais pelo  oportunismo, muitos se ressentem da falta de candura, e, buscam, sem sucesso, fórmulas mágicas e exóticas de autoajuda, numa tentativa de reencantar a vida.
Na ficção a candura foi retratada no best-seller “O Pequeno Príncipe. O conto gira em torno de um principezinho de contos de fadas, que se encontra com um aviador em pleno deserto, após uma aterrissagem de emergência deste último. Nos contatos subsequentes, o aviador é surpreendido pelas perguntas do pequeno principe, que revelam uma candura estonteante, que desarmava todo seu modo de ver pragmático, e, que é um retrato de cada um de nós, já na fase dita adulta.  No referido texto, o narrador compartilha que desde o tempo de sua infância, carregava um ‘trauma’ causado pelos adultos, por não compreenderem suas idéias de quando criança, e, critica os adultos por só pensarem em cálculos, esquecendo certas essências da vida. E aquela criança vai transmitindo as mais sábias, questionadoras e interessantes lições de vida, como no seguinte diálogo com a raposa: “ Vem brincar comigo, propôs o principezinho. Estou tão triste....- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda.- Ah! desculpa, disse o principezinho. Após uma reflexão, acrescentou:- Que quer dizer "cativar"? - Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras? - Procuro os homens, disse o principezinho. Que quer dizer "cativar"? - Os homens, disse a raposa, têm fuzis e caçam. É bem incômodo! Criam galinhas também. É a única coisa interessante que fazem. Tu procuras galinhas? - Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa "criar laços..."- Criar laços? - Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas." (de Antoine de Saint Exupéry). O livro é uma fábula moderna, e contém a mensagem da criança, da infância, da simplicidade, e, da candura perdida.
Na vida real, JESUS foi  o exemplo de candura por excelência, assim destacada pelo autor Oto Borchert, em seu livro “O Jesus Histórico”: “Uma nuvem negra de formas mentirosas de polidez sempre obscurece a nossa veracidade. Estamos acostumados a ser circunspectos, afirmamos que “certas coisas não se dizem”. Mas Jesus era cândido de maneira quase desapiedada, enfrentando com a verdade e a bondade, a hipocrisia, a falsidade e a injustiça, sem medo de ser verdadeiro. Dentre os muitos registros de seus relacionamentos, destacamos por oportuno aqui, quatro de Seus encontros de pura candura:
1. Com o jovem rico, a quem expôs a superficialidade de sua empolgação em segui-Lo, não obstante muito amá-Lo, deixou-o seguir sozinho seu caminho. Não alimentou as falsas esperanças daquele jovem barateando o custo de segui-Lo em detrimento do peso da verdade do que este caminho implicaria.
2. Com Nicodemos, uma respeitável autoridade religiosa, com fama de ter um grande conhecimento, e, membro de uma elite poderosa, ao compartilhar “que até então ele falhara em viver”; que ele não obstante toda sua erudição e imagem pública, estava no caminho errado, e, que assim, mais radical do que voltar a ser como uma criança, tornava-se necessário, como que “nascer de novo”. 
3. Noutra oportunidade Jesus, vendo uma pobre viúva ofertando umas  moedinhas, e ao lado dela os fariseus ricos e avarentos, ousadamente destacou a pequena oferta dela em detrimento das quiçá polpudas contribuições exibidas pelos ricos; aquela deu do pouco que lhe fazia falta, estes outros, se exibiam com a oferta de um pouco do muito que lhes abundava. Estes ofertavam sob a luz dos holofotes para serem enaltecidos, aquela o fazia discretamente, talvez até com vergonha pelo seu reduzido valor, debaixo do anonimato que normalmente encobre os pobrezinhos.
4. Também quando Jesus confronta seus ouvintes, e destaca como paradigma a ser imitado, os samaritanos, um povo vizinho, de outra forma discriminado, ao ponderar como creram em Suas palavras por si só, sem requererem ver milagres; outra vez, quando contou a parábola do bom samaritano, para responder à pergunta de um doutor da Lei sobre “quem era o meu próximo”, e,  a quem devo amar; e, ainda, para ilustrar a gratidão de apenas um entre dez que haviam sido milagrosamente curados por Jesus.
Sim, Ele era sincero em tudo, falando em voz alta de coisas que o mundo concorda em encobrir com o silêncio.” E, neste interím, “Ele contava parábolas, histórias tão bonitas, ricas de sabedoria divina. Acolhia as crianças, os marginalizados, os pobres, os doentes e os pecadores. Admirava as aves do céu, as campinas, as flores do campo, as montanhas, os rios e lagos”. Este é o outro lado da candura que pode reencantar o mundo, e, cuja falta no nosso quotidiano, pode ser melhor avaliada se nos permitirmos, em nossos relacionamentos diários, sair da superficialidade, para logo constatar o peso que nosso próximo carrega, em volta, levando em alguns casos a resultados trágicos só diagnosticados muito tardiamente, e, a diferença que um toque de candura, de verdade com bondade, ainda pode fazer.