sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

A FERA ADORMECIDA



A Fera Adormecida, que não tem nada de Bela Adormecida, sendo mesmo a antítese do belo, põe em evidencia o que de pior tem a humanidade, quando a fúria de uma multidão ensandecida emerge como protagonista de uma tragédia pública como num linchamento. A revista Veja de 10/02/2016, sob o título "MATARAM A MULHER?" A GÊNESE DO LINCHAMENTO QUE CHOCOU O BRASIL”, publicou uma matéria de André Petry, sobre a morte trágica de uma mulher, aos 33 anos, mãe de duas meninas, uma de 12 anos e a outra de apenas 1 ano, residente no Guarujá, vítima inocente da fúria assassina de uma turba enlouquecida, e transtornada. Alguns destaques da referida matéria publicada:
Um fato banal mas que se revelou fatal. “No dia em que seria espancada até a morte por uma multidão furiosa, Fabiane Maria de Jesus acordou ansiosa para estrear sua nova aparência. Cansada da longa cabeleira negra, mandara cortá-la à altura do pescoço e, na noite anterior, logo que o marido saiu para seu trabalho noturno, resolveu mudar a cor dos cabelos. Descoloriu-os com água oxigenada e pintou-os de loiro. Eles ganharam uma cor de fogo, entre o vermelho e o amarelo.” Esta nova aparência foi associada com aquela do boato que já circulava na comunidade em volta sobre a ação de “uma mulher que, diziam, andava sequestrando crianças para arrancar-lhes o coração em rituais de magia negra...
A força diabólica dos boatos e da credulidade apressada de uma população desamparada. “No dia 24 de abril, quinta-feira, apareceu um alerta tenso no Facebook, a rede social que Morrinhos inteiro conhece e acessa. A sequestradora fora vista num bairro ali perto. O perigo estava próximo...No dia seguinte, a página do serviço que havia tempos denunciava crimes e dava dicas de segurança no Facebook, informou que “uma mulher está raptando crianças para realizar magia negra... Durante toda essa semana recebemos diversas mensagens de seguidores sobre o fato. Se é boato ou não, devemos ficar alertas... O aviso provocou uma cascata interminável de reações de raiva, medo ou ameaça. Um usuário disse que pensava que a história da sequestradora era boato, mas interpretou o post como uma confirmação. Outro perguntou onde havia fotos “desse monstro”. Outro disse que se ela aparecesse em Morrinhos ia “tomar só rajada, essa cachorra”. Outro pediu uma foto “dessa bruxa” e avisou que “ela vai ter o que merece”. Outro disse que o caso estava deixando “pais e filhos assustados aqui no bairro”. Outro avisou que, se a mulher aparecesse no seu bairro, ela seria linchada, a “vagabunda”, “safada”, “essa pilantra”, “coração de pedra”, “sua possuída”. Outro avisou que a mulher era procurada no Paraná, onde havia tentado sequestrar “uma criança em uma creche em Pontal do Paraná”. Outro, com uma certeza cheia de pontos de exclamação, informou que “acabaram de sequestrar uma criança no bairro ... !!!!!!!”. Outro comentou que “tem que matar essa mulher”. Outro avisou que “falam que ela tem um Fox preto”. Outro aproveitou para dizer que uma mulher vestida de enfermeira andava espetando uma seringa nas pessoas para infectá-las com o vírus HIV. Outro disse que “na última terça-feira” tinham encontrado duas crianças mortas noutro bairro, “ambas sem o coração”. Outro garantiu que a sequestradora “pegou um menino daqui do nosso bairro”. As conversas se prolongaram... em algum momento, uma voz feminina gritou a senha para o massacre: ‘É eeeeeelaa!’. A multidão caiu em cima da vítima...”
A covardia extrema: de um lado a multidão, do outro uma vítima indefesa.Uma das testemunhas estima que havia entre 200 e 300 pessoas no ato de linchamento. Outras testemunhas estimam em 1.000 e até 3.000 pessoas...Nem todas ali tinham certeza de que a mulher linchada era a criminosa, mas contam-se nos dedos os que tentaram defende-la. Em sua defesa alguns alegam que nada podiam fazer, pois a multidão estava enraivecida, e, caso fossem fazer a defesa da mulher, com toda a certeza seriam agredidas.
A triste estatística: “A Justiça Popular no Brasi, calcula que, nos últimos sessenta anos, entre 1 milhão de brasileiros participaram de um linchamento ou tentativa de linchamento. E, o articulista pontifica: O linchamento não é só coisa de desordeiros. Também envolve gente que está numa busca desesperada por ordem e segurança, gente que está exausta com a incompetência do poder e das instituições para garantir a paz social”.
Agora desejamos continuar, destacando mais alguns pontos comuns neste tipo de violência:
Uma fúria incomum que não sabe nem por quem nem porquê. Foi mais um despertar da fera adormecida, ou besta de índole criminosa como sói acontecer em situações como esta. Impulsionado e escondido na multidão, pode ser identificada também em explosões de torcidas organizadas de futebol extrapolando os limites da empolgação; protestos públicos originalmente pacíficos, subitamente transtornados, por baderneiros mascarados infiltrados, e, em confronto com a Policia; etc.
Em todas, são elementos comuns:
Turba demagoga arrastada facilmente.Turba define-se como “multidão em movimento ou desordem, potencialmente violenta; turbamulta, turbilhão. Multidão desordenada, geralmente com a intenção de fazer justiça com as próprias mãos. A “turba” é um fenômeno social primitivo das cidades pré-capitalistas. Pode-se dizer que a “turba” era formada pelos pobres urbanos, assalariados ou não, que, em tumulto ou em rebelião, saíam pelas ruas fazendo arruaça e saques e reivindicando, na maioria das vezes, o restabelecimento de ordem anterior ou o cumprimento de normas preestabelecidas.” É sempre oportuno  destacar, que a estridência da turba não é a voz do povo, mas antes seu simulacro
Os muitos espectadores omissos. Em outra tragédia afim, na mesma reportagem, somos informados de que em N.Y. “uma jovem de 28 anos foi atacada por um desconhecido que lhe deu duas facadas nas costas e fugiu. Pouco depois, o criminoso voltou, encontrou a jovem no chão e esfaqueou-a de novo, estuprou-a e levou 49 dólares. ... 38 vizinhos ouviram seus gritos e nada fizeram. Posteriormente, pesquisadores, tentando entender o absurdo da falta de solidariedade, fizeram uma constatação surpreendente: quanto mais gente estiver no local de um crime ou acidente, menor a chance de a vítima ser socorrida. O paradoxo não decorre da indiferença humana ao sofrimento alheio, mas da redução de responsabilidade individual que todos nós sentimos quando estamos em multidão.
O caldeirão fatal: mistura de reações de raiva, de medo, e de defesa frente a uma ameaça aparente, que ao final irá se revelar falsa; açodamento em fazer justiça logo, e, com as próprias mãos; covardia inerente à turba; insensibilidade de outros (se não é comigo, não me atinge), que é também uma forma de indignidade; e, não por último os perigos de tentar se conformar e agradar às multidões, mesmo em suas marchas de insensatez, em detrimento da consciência pessoal. Não passa desapercerbido também, a expressão aparvalhada de alguns dos réus, como a demonstrar seu envolvimento circunstancial, não obstante, nem por isso menos grave. Finalmente, que, por trás de tudo isto, está o Mal (*), esta realidade transcendental, que se possessiona da turba,  consubstanciando o que aqui nos referimos aqui como despertar da fera adormecida, e, que uma vez desperta, só sossega com o derramamento de sangue.
Concluindo, junto com a revolta com este crime hediondo, remanesce o desejo de que a mão da justiça se faça pesar sobre os criminosos - incitadores e participantes diretos das agressões - identificados, e, sirva de alerta doravante, quando na iminência de novo despertar da besta adormecida; que o tribunal da consciência seja um justo juiz dos participantes anônimos e dos omissos;  e, não por último, que a memória de mais uma vítima, a cidadã brasileira Fabiane Maria de Jesus, cujo nome já define o nobre pertencimento, seja também um marco eficaz contra esta barbárie cruel e covarde  que envergonha toda uma Nação.


(*) Sobre o Mal, ver também em “O que há de errado com o mundo?” (post em 19 set 2015).