A Fera Adormecida, que não tem nada de Bela
Adormecida, sendo mesmo a antítese do belo, põe em evidencia o que de pior tem
a humanidade, quando a fúria de uma multidão ensandecida emerge como
protagonista de uma tragédia pública como num linchamento. A revista Veja de 10/02/2016,
sob o título "MATARAM A MULHER?" A
GÊNESE DO LINCHAMENTO QUE CHOCOU O BRASIL”, publicou uma matéria de André
Petry, sobre a morte trágica de uma mulher, aos 33 anos, mãe de duas
meninas, uma de 12 anos e a outra de apenas 1 ano, residente no
Guarujá, vítima inocente da fúria assassina de uma turba enlouquecida, e
transtornada. Alguns destaques da referida matéria publicada:
Um fato banal mas que se
revelou fatal. “No dia em que seria espancada até a morte por uma multidão furiosa,
Fabiane Maria de Jesus acordou ansiosa para estrear sua nova aparência. Cansada
da longa cabeleira negra, mandara cortá-la à altura do pescoço e, na noite
anterior, logo que o marido saiu para seu trabalho noturno, resolveu mudar a
cor dos cabelos. Descoloriu-os com água oxigenada e pintou-os de loiro. Eles
ganharam uma cor de fogo, entre o vermelho e o amarelo.” Esta nova aparência foi associada com aquela do boato que já
circulava na comunidade em volta sobre a ação de “uma mulher que, diziam,
andava sequestrando crianças para arrancar-lhes o coração em rituais de magia
negra...
A força
diabólica dos boatos e da credulidade apressada de uma população desamparada. “No
dia 24 de abril, quinta-feira, apareceu um alerta tenso no Facebook, a rede
social que Morrinhos inteiro conhece e acessa. A sequestradora fora vista num
bairro ali perto. O perigo estava próximo...No dia seguinte, a página do
serviço que havia tempos denunciava crimes e dava dicas de segurança no
Facebook, informou que “uma mulher está raptando crianças para realizar magia
negra... Durante toda essa semana recebemos diversas mensagens de seguidores
sobre o fato. Se é boato ou não, devemos ficar alertas... O aviso provocou uma
cascata interminável de reações de raiva, medo ou ameaça. Um usuário
disse que pensava que a história da sequestradora era boato, mas interpretou o
post como uma confirmação. Outro perguntou onde havia fotos “desse monstro”.
Outro disse que se ela aparecesse em Morrinhos ia “tomar só rajada, essa
cachorra”. Outro pediu uma foto “dessa bruxa” e avisou que “ela vai ter o que
merece”. Outro disse que o caso estava deixando “pais e filhos assustados aqui
no bairro”. Outro avisou que, se a mulher aparecesse no seu bairro, ela seria
linchada, a “vagabunda”, “safada”, “essa pilantra”, “coração de pedra”, “sua
possuída”. Outro avisou que a mulher era procurada no Paraná, onde havia
tentado sequestrar “uma criança em uma creche em Pontal do Paraná”. Outro, com
uma certeza cheia de pontos de exclamação, informou que “acabaram de sequestrar
uma criança no bairro ... !!!!!!!”. Outro comentou que “tem que matar essa
mulher”. Outro avisou que “falam que ela tem um Fox preto”. Outro aproveitou
para dizer que uma mulher vestida de enfermeira andava espetando uma seringa
nas pessoas para infectá-las com o vírus HIV. Outro disse que “na última
terça-feira” tinham encontrado duas crianças mortas noutro bairro, “ambas sem o
coração”. Outro garantiu que a sequestradora “pegou um menino daqui do nosso
bairro”. As conversas se prolongaram... em algum momento, uma voz feminina
gritou a senha para o massacre: ‘É eeeeeelaa!’. A multidão caiu em cima da
vítima...”
A
covardia extrema: de um lado a multidão, do outro uma vítima indefesa. “Uma
das testemunhas estima que havia entre 200 e 300 pessoas no ato de linchamento.
Outras testemunhas estimam em 1.000 e até 3.000 pessoas...Nem todas ali tinham
certeza de que a mulher linchada era a criminosa, mas contam-se nos dedos os
que tentaram defende-la. Em sua defesa alguns alegam que nada podiam fazer,
pois a multidão estava enraivecida, e, caso fossem fazer a defesa da mulher,
com toda a certeza seriam agredidas.
A triste estatística: “A Justiça Popular no Brasi, calcula que, nos últimos
sessenta anos, entre 1 milhão de brasileiros participaram de um linchamento ou
tentativa de linchamento. E, o
articulista pontifica: O linchamento não é só coisa de desordeiros. Também
envolve gente que está numa busca desesperada por ordem e segurança, gente que
está exausta com a incompetência do poder e das instituições para garantir a
paz social”.
Agora desejamos continuar, destacando mais alguns
pontos comuns neste tipo de violência:
Uma
fúria incomum que não sabe nem por quem nem porquê.
Foi mais um despertar da fera adormecida, ou besta de índole criminosa como
sói acontecer em situações como esta. Impulsionado e escondido na multidão,
pode ser identificada também em explosões de torcidas organizadas de futebol
extrapolando os limites da empolgação; protestos públicos originalmente pacíficos,
subitamente transtornados, por baderneiros mascarados infiltrados, e, em
confronto com a Policia; etc.
Em todas, são elementos comuns:
Turba demagoga arrastada facilmente.Turba define-se como “multidão em movimento ou desordem, potencialmente violenta; turbamulta,
turbilhão. Multidão desordenada, geralmente com a intenção de fazer justiça com
as próprias mãos. A “turba” é um fenômeno social primitivo das cidades
pré-capitalistas. Pode-se dizer que a “turba” era formada pelos pobres
urbanos, assalariados ou não, que, em tumulto ou em rebelião, saíam pelas ruas
fazendo arruaça e saques e reivindicando, na maioria das vezes, o
restabelecimento de ordem anterior ou o cumprimento de normas preestabelecidas.”
É sempre oportuno destacar, que a
estridência da turba não é a voz do povo, mas antes seu simulacro
Os
muitos espectadores omissos. Em outra
tragédia afim, na mesma reportagem, somos informados de que em N.Y. “uma jovem de 28
anos foi atacada por um desconhecido que lhe deu duas facadas nas costas e
fugiu. Pouco depois, o criminoso voltou, encontrou a jovem no chão e
esfaqueou-a de novo, estuprou-a e levou 49 dólares. ... 38 vizinhos ouviram
seus gritos e nada fizeram. Posteriormente, pesquisadores, tentando entender o
absurdo da falta de solidariedade, fizeram uma constatação surpreendente: quanto
mais gente estiver no local de um crime ou acidente, menor a chance de a vítima
ser socorrida. O paradoxo não decorre da indiferença humana ao sofrimento
alheio, mas da redução de responsabilidade individual que todos nós sentimos
quando estamos em multidão.
O
caldeirão fatal: mistura de reações
de raiva, de medo, e de defesa frente a uma ameaça aparente, que ao final irá
se revelar falsa; açodamento em fazer justiça logo, e, com as próprias mãos; covardia
inerente à turba; insensibilidade de outros (se não é comigo, não me atinge), que
é também uma forma de indignidade; e, não por último os perigos de tentar se
conformar e agradar às multidões, mesmo em suas marchas de insensatez, em
detrimento da consciência pessoal. Não passa desapercerbido também, a expressão
aparvalhada de alguns dos réus, como a demonstrar seu envolvimento
circunstancial, não obstante, nem por isso menos grave. Finalmente, que, por
trás de tudo isto, está o Mal (*), esta realidade transcendental, que se
possessiona da turba, consubstanciando o
que aqui nos referimos aqui como despertar da fera adormecida, e, que uma vez desperta,
só sossega com o derramamento de sangue.
Concluindo, junto com a revolta com este crime
hediondo, remanesce o desejo de que a mão da justiça se faça pesar sobre os criminosos
- incitadores e participantes diretos das agressões - identificados, e, sirva
de alerta doravante, quando na iminência de novo despertar da besta adormecida;
que o tribunal da consciência seja um justo juiz dos participantes anônimos e dos
omissos; e, não por último, que a
memória de mais uma vítima, a cidadã brasileira Fabiane Maria de Jesus, cujo
nome já define o nobre pertencimento, seja também um marco eficaz contra esta
barbárie cruel e covarde que envergonha
toda uma Nação.
(*) Sobre o Mal, ver também em “O que há de errado com o mundo?” (post em 19 set 2015).