terça-feira, 17 de novembro de 2015

CONHECER PELA RAZÃO, PELO CORAÇÃO, E, PELA FÉ



A famosa alegoria da caverna de Platão mostra a situação dos prisioneiros acorrentados numa caverna, e, vendo unicamente umas sombras que julgaram ser a realidade, como simbolizando a ilusão em que vivem. Embora eventualmente liberte-se um preso de suas correntes, o caminho para a verdade se apresenta como uma aventura dolorosa. O que Platão quis dizer com o mito é que os seres humanos têm uma visão distorcida da realidade, e que há um difícil caminho em direção à verdade, que, não obstante, libertaria do erro.
Na Idade Média, esta caminhada tinha ainda o peso da tradição, dominada pela autoridade religiosa; “quem se afastasse da doutrina da Igreja, era perseguido como herege (caça às bruxas). O uso do poder para reivindicar o conhecimento verdadeiro, era exercido pelos sacerdotes, alegando terem Deus do seu lado”. A História registra a triste memória da Inquisição.
A virada veio com o Iluminismo no Seculo XVIII. Com Descartes estabelece-se o domínio absoluto da razão que inaugura uma nova era, chamada de Idade da Razão, e, que foi também uma reação à camisa de força imposta pelo autoritarismo da Igreja na Idade Média. É sintomática a célebre afirmação do Iluminismo de ter inaugurado um novo saeculum (“Novus ordo seclorum”, que posteriormente aparece na nota de dólar americano).  O conhecimento obtido pela razão é, doravante, considerado como o único conhecimento verdadeiro. Trata-se de um conhecimento conceitual, objetivo, impessoal, e atemporal;  desenvolve-se pelo raciocínio claro, e exige sempre uma objetividade que é desapego e abstração das condições do próprio sujeito, em detrimento das emoções, da imaginação, da espiritualidade, etc.
Neste interim, a Reforma Protestante, impulsionada pela Imprensa, recém descoberta, espalha a chama do livre exame da própria Biblia, até então monopólio da Igreja. Deslancham também os Descobrimentos, inclusive de outras Terras ainda não desbravadas pela civilização conhecida.
Os pontos fortes deste conhecimento pela razão, incluem a derrubada das  barreiras da superstição, da opinião infundada, e, do fanatismo. Seus pontos fracos decorrem dos exageros do Racionalismo extremado, que erigiu a razão em deusa. “O imperativo do racionalismo, sapere aude (ousa ser racional), conduziu o ser humano a considerar a razão como uma “deusa”  (Viktor Frankl), simbolicamente entronizada na Revolução Francesa
A reação ao  Racionalismo ocorre já no sec. XIX com uma corrente de pensamento que se denominou de Existencialismo. Kierkegaard (1813-1855), filósofo e teólogo dinamarquês, é considerado um dos pais do Existencialismo Cristão. Ele “critica o papel fundamental que a razão sempre exerceu sobre a consciência ocidental, a ponto de tornar-se a razão como equivalente da realidade” . Para ele, o pensamento não tem sentido sem a ação. São as origens do Existencialismo, corrente de pensamento que destaca antes o papel da existência, como fonte de conhecimento, vis-a-vis ao conhecimento conceitual.  
Ponto forte do Existencialismo é a valorização dos sentimentos; Pascal (1623 - 1662físico, matemático, filósofo moralista e teólogo francês, pontifica: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. E, é o coração que sente Deus e não a razão”. Os pontos fracos ficam salientes nos exageros do emocionalismo em detrimento da razão, como na visão distorcida de Hitler sobre a essência e ação da propaganda: “Esta deveria ser antes de tudo popular, não devia dirigir-se às pessoas instruídas, mas unicamente e sempre à massa, e para ser eficiente, seria necessário, além disso, que se centrasse em alguns objetivos a serem repetidos, sempre, e sob a forma de slogans. Devia apelar sempre para os sentimentos, jamais à razão, e renunciar expressamente a toda a objetividade.”(Joachim Fest)
Para além do conhecimento ordinário, envolvendo mais bom senso  do que reflexão, “nos últimos séculos, e imbuídos de um tipo de positivismo implícito, usamos saber e conhecer para o que julgamos poder provar de alguma forma e acreditar para o que percebemos estar se degenerando em mera opinião pessoal, sem muito apoio no mundo mais amplo”. Verdade só através da Razão, e com o cientificismo, exigindo como condição sine qua non, objetividade e distanciamento do observador. Fica em segundo plano qualquer outro tipo de conhecimento, como a crença, a inspiração artística, etc.
N.T. Wright pontua que “todo o projeto que conhecemos como modernidade, tendo os movimentos iluministas europeu e norte-americano como seus carros-chefes, estava baseados no epicurismo.  Os efeitos disso são visíveis não somente no debate entre ciência e religião, mas em muitas outras áreas da vida, principalmente a política”. (Epicuro, foi um filosofo grego do sec. III antes de Cristo, segundo o qual “os deuses não se preocupavam com nosso mundo, fosse para intervir nele ou para julgar seus habitantes após a morte”). Outras visões distorcidas da realidade, estão presentes na linguagem do dia a dia, e, refletem uma ética de conveniência (se é bom pra mim, tudo bem), o relativismo moral (não existem verdades absolutas, tudo é relativo), etc.
A RELAÇÃO CONHECIMENTO E FÉ, alguns destaques:
Jonathan Edwards (1703-1758),  pregador congregacionalteólogo calvinista e missionário aos índios americanos, considerado um dos maiores filósofos norte-americanos. Condenava um conhecimento apenas conceitual, em favor de um conhecimento pessoal, sentido, cognitivo e vivencial. Insistia que a fé humana não era uma questão de pertencer a uma Igreja, nem religiosidade socialmente aceitável, mas, sim, uma questão do coração ativado pela vontade. Segundo ele, as ações demonstram o verdadeiro cristianismo, praticar, não apenas ouvir, a Palavra.”
Martim Buber (1878-1965), filósofoescritor e pedagogo austríaco. Conhecimento relacional: “O relacionamento homem-homem segue uma das duas possibilidades: EU/TU e EU/ISSO. Se analiso outra pessoa, ou a utilizo como objeto, para mim ela é um simples isso. Se a deixo me influenciar com seu ser pleno através do diálogo, ela se torna um tu. Minhas próprias mudanças dependem deste relacionamento. Eu/tu é um encontro existencial, pessoas vivas se relacionando de modo a se conhecerem melhor, umas às outras. Este deveria ser, a rigor, o relacionamento entre homem e homem, mas também entre o homem e Deus. O homem deve encontrá-Lo existencialmente, e não apenas intelectualmente”.
Joshua Heschel  (1907-1972), rabino austro-americano. Conhecimento situacional. “Na procura da compreensão dos problemas religiosos, o rabino Joshua Heschel se coloca numa linha de conhecimento que chama de “situacional”, porque se ocupa com as situações, supõe uma experiência interior e procura, antes de tudo, compreender os problemas que envolvem a nossa existência real. O conhecimento situacional se distingue daquele que é predominantemente conceitual, que se desenvolve pelo raciocínio, procura um aumento de conhecimento do mundo exterior e exige sempre uma objetividade que é um desapego e abstração das condições do próprio sujeito. O inicio do conhecimento situacional não é a dúvida ou o desapego mas sim a admiração, o engajamento. Se não nos comprometermos pessoalmente, o problema não terá presença”.
Dr. Samuel Bergman (1883 –1975), filósofo. O conflito entre a fé e a razão, decorre de uma falsa compreensão da fé como uma origem especial da verdade, como uma fonte de conhecimento objetivo e complementar à razão humana, mantendo-se porém distinta desta e independente da mesma. A fé e o raciocínio foram assim concebidos como fontes separadas da verdade e do conhecimento. A fé é uma relação possuindo caráter imediato análogo ao existente entre o “eu” e o “tu”. O crente busca a Deus e o encontra. Sabe que Deus tem para ele a mão estendida. Fala a Deus e recebe uma resposta. Ora a Deus, com tanta certeza da sua existência, como da sua própria, a do seu próximo. Não exige provas para esta certeza suprema; porém se alguém lhe solicitasse provas, não poderia apresentar. Não pode fornecer evidência objetiva para  o que, em seu coração, conhece como absolutamente verdadeiro e real.”
N.T.Wright (1948 ), bispo anglicano. Conhecer pela Fé, pela Esperança, e pelo Amor. “O amor é a forma mais profunda de conhecimento. Todo conhecimento é um dom de Deus, tanto o histórico e científico como o de fé, esperança e amor, mas o maior destes é o amor; isto não significa que deixamos de acreditar em evidências e argumentos, ou, na história e na ciência. Significa apenas que eles foram superados pela realidade maior da qual se apropriaram, para a qual apontam, e na qual encontrarão um lar novo e maior. Esse é o modo de conhecimento necessário, se quisermos viver no novo mundo público, o mundo iniciado na Páscoa, o mundo em que Jesus é Senhor e César não é”.
Palavras de Jesus -Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. E, Eu sou o caminho a verdade e a vida.” Esta é a verdade que é possível discernir através do conhecimento pela Fé, pela Esperança e pelo Amor. O conhecimento alcançado pela Razão e pelo Coração podem, são insuficientes para a apreensão dessa verdade.